Teia
(2007-2008)
[trilha sonora]
Grupo M-U-R-O
Textos extraídos de minha dissertação de mestrado:
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“A performance baseia-se na idéia de ‘captura’, de uma simples captação dos sons via microfones até o aprisionamento de uma imagem, que é construída na frente do público, e posteriormente ‘capturada’ em uma projeção multimídia. A construção sonora segue um roteiro em que figuram desde sons sem tratamento até algumas texturas com grande densidade (processadas via Max/MSP), redefinindo e impondo ambigüidades à relação referencial ente imagem e resultado sonoro” (Re:New, 2008).
Ilustração 52 – Imagem da performance “Teia”, no FILE RIO 2009 (Foto: Fernando Iazzetta).
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O primeiro estímulo para “Teia” partiu do integrante do M-U-R-O, Giuliano Obici, que propôs ao grupo um trabalho onde fitas adesivas fossem utilizadas como matéria prima, e cuja performance basicamente envolvesse a construção de uma espécie de teia de aranha com estas fitas.
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Em um primeiro momento esta idéia estava atrelada a um conceito de atividade artística intervencionista, onde a performance consistiria na construção destas teias em diversos locais públicos, nos quais as teias resultantes permaneceriam por um período de tempo, como uma instalação artística. Porém, no processo de elaboração coletiva do trabalho a performance se transformou, por diferentes motivos, em um apresentação multimídia, montada sobre um palco, para uma platéia contemplativa.
Neste formato de concerto, precisávamos de uma estrutura no palco onde fosse possível prender as fitas. Logo aderimos à idéia de utilizar uma estrutura em forma de um cubo sem paredes (com cada face formada por um quadrado de 2 metros por 2 metros), onde os performers pudessem entrar e sair enquanto construíssem a teia (vide ilustração 53). Nesta fase, também definimos que dois performers no palco seriam o suficiente para tornar a performance rica em gestos e sons, ao mesmo tempo que clara e objetiva.
Para as primeiras apresentações utilizamos uma estrutura feita de madeira, que logo se mostrou frágil nas conexões, e nada prática para o transporte, de modo que a substituímos por uma de metal, mais leve e fácil de montar.
Em relação à parte sonora, nos interessamos muito, no decorrer das reuniões, pelos sons produzidos pelas fitas, de modo que a intenção musical tornou-se explorar estes sons de diversas maneiras na temporalidade da apresentação.
Com as fitas, tínhamos basicamente a seguinte variedade de sons: o som das fitas descolando lentamente do rolo, que podia ser controlado pelo performer e continha um espectro sonoro bastante rico, com muitos graves; o som das fitas descolando rapidamente do rolo, com mais agudos; a sobreposição dos diferentes gestos sonoros “instrumentais” feitos pelos intérpretes enquanto colocavam a fita na estrutura, eventualmente gerando novos sons através do contato das fitas e do seu corpo com a teia que se criava; o som dos intérpretes amassando as fitas para torná-las mais parecidas com os fios de uma teia, rico em médio-agudos; e o som de estalos da teia se ajustando à estrutura, que permaneciam soando por alguns minutos após o término da parte performática
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Ilustração 53 – Estrutura preechida pela fitas (Foto: Fernando Iazzetta).
Para a captação sonora utilizamos dois microfones sem fio presos ao pulso dos performers, não permitindo ao público vê-los em cena. Como observaremos adiante na estrutura formal da parte sonora, optamos, no início da performance, por deixar soar apenas os sons acústicos, sem nenhuma amplificação ou processamento. Deste modo, não apenas causaríamos uma surpresa no público ao manipular estes sons, como também permitiríamos que as pessoas se acostumassem em um primeiro momento com o material sonoro acústico, podendo identificar gradualmente a “captura” do mesmo pelo sistema digital.
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Vamos apresentar então um roteiro de toda a performance, que será útil para a compreensão da descrição do patch criado para “Teia”.
1 – Blackout. Os intérpretes começam a construir a teia com as fitas. O público não os vê e apenas escuta os sons acústicos (sem amplificação alguma) do som produzido pelas fitas adesivas sendo descoladas de seus rolos.
2 – Aos poucos, o som começa a ser amplificado e difundido pelos alto-falantes. Paralelamente, e de forma gradual, se acendem algumas luzes de maneira sutil, exibindo apenas os contornos dos performers e da estrutura.
3 – Delays dos sons começam a ser disparados, sobrepondo-se aos sons acústicos e amplificados. A intensidade da performance vai crescendo, junto com a massa sonora e o jogo de luzes.
4 – Quando as fitas já estão montadas na estrutura, os performers passam a amassá-las com as mãos, para torná-las mais parecidas com fios de uma teia. O volume é abaixado para permitir a apreciação deste som, que difere do som da colocação das fitas. As camadas de sobreposição sonora continuam a crescer, mesmo com volume reduzido.
5 – Os performers ligam pequenas lanternas e começam a iluminar a teia montada e a projetar as sombras das fitas nas paredes. Para este efeito funcionar, um novo blackout das luzes do palco ocorre. As 10 camadas em delay da sobreposição sonora dos sons feitos pelos performers vão sendo amplificadas cada vez mais.
6 – Os performers saem de cena, a massa sonora atinge seu limite, e, subitamente, o som sofre um grande atenuamento em seu volume e passa a sofrer alguns processamentos, a destacar filtragem e reverberação. Uma projeção que lida com diferentes fotos da teia, preparadas previamente, é projetada sobre a estrutura em uma tela localizada atrás do palco. Neste processo, a projeção ilumina a teia, o que acaba produzindo sombras na tela ao fundo do palco. A transição entre as fotos ocorre lentamente através de um processo computacional.
7 – Passa a haver um jogo entre a projeção, os processamentos sonoros das camadas sobrepostas em delay, e da luz. Um loop de um som gravado no início da performance também é utilizado nesta parte, mas sem processamentos.
8 – Os sons são filtrados, valorizando apenas a região grave, e tem início um longo fade out dos sons, das luzes e da projeção.
9 – Quando o volume sonoro já está bastante baixo, torna-se possível escutar pequenos estalos produzidos pelas fitas, se acomodando na estrutura. Assim a peça acaba.
A partitura apresentada a seguir, é a que utilizei na apresentação do Festival Re: New2008, e foi elaborada como um “guia”, uma seqüência de eventos que o intérprete do sistema interativo deve cumprir durante a performance. Podemos ver que, apesar da estrutura da obra ser bastante rígida, não há nenhuma indicação precisa de duração cronológica dos eventos. Ou seja, a performance pode ocorrer livremente, obviamente dentro de alguns parâmetros, e o sistema interativo, comandado por seu intérprete, se adaptará a ela.
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Ilustração 54 – Partitura de “Teia” utilizada pelo intérprete do sistema musical interativo.
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Detalhamento do sistema utilizado em “Teia”:
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Grupo M-U-R-O – Teia – 2007-2008
Intérpretes: Pelo menos 3. 2 performers; 1 intérprete, ou mais, para sistema musical interativo; 1 intérprete para sistema digital de geração de imagens (função que pode ser acumulada por um dos performers); e 1 operador de iluminação (função que pode ser acumulada pelo intérprete do sistema musical).
Duração: Aproximadamente 15 minutos.
Funcionamento do sistema musical interativo:
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Entrada dos dados: Através de microfones sem fio presos ao pulso dos performers.
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Processamentos: Uso de delay, filtros, e reverberação, através de patch desenvolvido no programa Max/MSP, e controlado em tempo real pelo intérprete do sistema interativo.
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Resposta do sistema: Através de alto-falantes.
Minha concepção para a criação do patch foi utilizar apenas os sons das fitas adesivas gerados em tempo real na primeira parte pelos performers, como fonte sonora para toda a performance, sem o uso de qualquer som pré-gravado ou sintetizado. Mas, como vimos na estrutura formal, de acordo com nosso conceito para a obra, embasado na idéia de ‘captura’, após a construção da teia haveria uma segunda parte da apresentação onde os performers sairiam de cena, permanecendo apenas fragmentos sonoros e visuais de sua gestualidade, “capturados” e apresentados pelo sistema interativo. Ou seja, era preciso capturar os sons da primeira parte, para utilizá-los na segunda.
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Para tanto, optei pelo uso do delay, ou atraso, dos sons captados pelos microfones. Mas, ao invés de ter apenas um sinal de áudio em atraso, compus um patch que permitia sobrepor até 10 destes sinais, cada um com um tempo de atraso distinto, definido em tempo real pelo intérprete do sistema interativo. Desta forma tornou-se possível deslocar temporalmente toda parte sonora da performance, realizada ao vivo, e ainda sobrepô-la várias vezes, com diferentes “atrasos”, aprisionando-a simbolicamente na teia.
Na prática, isto se dá da seguinte forma: quando a performance se inicia, seu som começa a ser armazenado por um período de tempo no objeto de delay do patch de Max/MSP para ser disparado mais tarde, em qualquer momento. Estipulei arbitrariamente no momento da programação que este período de tempo de armazenamento pelo delay seria de 1.000.000 de milissegundos, que equivale a um pouco menos de 17 minutos.
Quando cada delay é disparado, ele toca o que foi armazenado desde o início da performance, a não ser que o espaço entre o início da gravação e o disparo do delay ultrapasse 1.000.000 de milissegundos; neste caso, o delay irá tocar o que foi armazenado nos últimos 1.000.000 de milissegundos. Mas isto não ocorre em “Teia”, onde o último delay costuma ser disparado por volta dos 10 minutos após o início da performance (quando os performers encerram sua participação).
Como dissemos anteriormente, pela construção do patch, podem haver até 10 camadas de delays sobrepostas simultaneamente. E é o intérprete do sistema musical interativo quem irá disparar cada um dos atrasos, conforme suas decisões interpretativas tomadas em tempo real.
A seguinte ilustração mostra, basicamente, como o patch está estruturado nesta primeira parte da performance:
Ilustração 55 – Modo de funcionamento do patch de “Teia”.
Durante toda a primeira parte é basicamente isso que o que ocorre. O intérprete do sistema musical interativo dispara os sons armazenados pelo patch, deslocando-os, em tempo real, para outra temporalidade, e sobrepondo-os em diversas camadas. Além disso, também controla o equilíbrio das amplitudes sonoras entre os sons do sistema digital e os sons acústicos. Isto tudo ocorre paralelamente à construção física da teia e simboliza muito bem a “captura” que está ocorrendo, em diversos níveis, na obra.
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Este processo não pode ser automatizado; afinal, é ele que permite um uso mais rico da performance enquanto elemento composicional, deixando os performers livres para construir a teia no tempo que acharem necessário. O intérprete do sistema interativo observa a performance de fora do palco para tomar suas decisões em relação ao tempo de cada disparo dos delays, baseado na estrutura formal que vimos anteriormente.
Na imagem a seguir podemos ver a parte interna do patch que realiza esse processo:
Ilustração 56 – Parte interna do patch utilizado em “Teia”.
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Quando a teia já está construída, os performers iniciam um processo de amassar as fitas com as mãos, para torná-las mais parecidas com os fios de uma teia. Esse novo gesto “instrumental” gera um novo tipo de som. Para que este som seja valorizado, o volume da sobreposição dos delays sofre um decaimento.
Depois, os intérpretes param de produzir sons, e os microfones são desligados. Cada um deles acende uma lanterna cada um e começa a ressaltar as características da teia resultante, através de um jogo feito com as sombras produzidas pela iluminação com estas lanternas. Sonoramente, o volume segue um crescendo, lento e contínuo, ilustrando o aprisionamento de todos os gestos sonoros presos naquela estrutura.
Quando os performers saem do palco, o volume e a sobreposição sonora chegam quase a seu limite. Neste momento, o intérprete do sistema digital tem liberdade para prolongar este crescendo por quanto tempo achar necessário, decidindo quando disparar a segunda parte da performance, baseado na sua concepção estética, na qualidade do som e na amplitude do som sendo difundido pelas caixas. No patch, este processo envolve o apertar de apenas um botão, como podemos ver na próxima imagem, que mostra a interface do patch de “Teia”.
A interface está dividida por cores para facilitar a compreensão do usuário e usabilidade.
No segmento de cima, em branco, temos apenas a autoria, a data, o nome do grupo e o nome da performance para a qual o patch foi criado. Também há a opção para o usuário de escolher entre um sistema estereofônico ou quadrifônico.
Ilustração 57 – Interface do patch de “Teia”
Na parte da esquerda, em azul, existem dez sinais luminosos que indicam quantas camadas de delay estão sendo utilizadas simultaneamente. Nesta imagem, que mostra a aparência do patch em uma situação de concerto, podemos ver que o intérprete do sistema interativo já disparou quatro camadas do delay.
A parte central, na cor creme, oferece basicamente as seguintes funções: volume do sinal de entrada; opção entre o uso de microfones e o uso de arquivos pré-gravados (para ensaios) como sinais de entrada; botão “Prepara para Delays” que aciona todos os itens necessários para iniciar a performance; botão “Segunda Parte”, mencionado anteriormente e que dispara os processamentos da segunda parte da performance; botão “RESET/PÂNICO”, que desliga o sistema e retorna às configurações iniciais; opção de ligar o som direto para testar as conexões de áudio; botão que inicia o armazenamento do som para o delay; e botão para disparar os delays.
No segmento abaixo, em roxo, há apenas o volume geral de todos os sons produzidos pelo sistema. A parte em verde possui os filtros usados na segunda parte, com todos seus parâmetros, que serão descritos a seguir. E o último segmento, em vermelho, apresenta a opção de gravar o áudio produzido pelo sistema.
Quando o intérprete do sistema interativo dá início à segunda parte da obra, o som sofre um corte súbito de intensidade, e passa por filtros e por um reverb, as lanternas se apagam e o projetor é acionado. Nesta última parte da apresentação, a captura da teia é transposta do universo real para um universo simbólico. Imagens da teia, preparadas anteriormente, são projetadas, sobre a estrutura em uma tela de projeção atrás do palco, e começam a se movimentar lentamente com transições feitas com a fusão das imagens. A projeção, somada a um pequeno jogo de luzes, ilumina a teia e cria sombras na tela localizada ao fundo do palco. Os sons permanecem os mesmos da primeira parte, mas agora recebem alguns processamentos: filtragem e reverberação.
O intérprete do sistema interativo explora em tempo real, possibilidades tímbricas dos filtros. Existe um filtro para o canal esquerdo e outro para o canal direito. Os filtros são da categoria band-pass, onde apenas regiões de freqüência são afetadas. O usuário pode controlar os parâmetros de volume, freqüência central da região afetada e da largura que esta região terá. Além disso, também controla o volume de um fragmento sonoro gravado no início da performance com os sons da fita em loop, sem nenhum processamento. Este fragmento é utilizado para trazer à memória do público o som original, gerador de tudo.
No final, os filtros vão para a região grave, e um lento fade-out permite que o sistema auditivo dos ouvintes vá se ajustando aos sons mais baixos. Quando menos se espera, as pessoas já estão ouvindo apenas os sons na sala dos estalos da fita se adaptando à estrutura, sem nenhuma amplificação ou processamento.
Ilustração 58 – Modo de funcionamento do patch de “Teia”.
Toda a estruturação formal do trabalho surgiu em torno da questão da performance, que, em “Teia”, é o mais importante elemento composicional. A composição coletiva da obra multimídia serviu para dar um sentido mais amplo para esta performance, agregando, pelas ferramentas tecnológicas, outros valores artísticos e estéticos. A composição do patch do sistema musical interativo baseou-se plenamente nos elementos performáticos para ser estruturada. Mas, ao desvincular os seus sons dos gestos físicos geradores, sobrepô-los em várias camadas e processá-los, também colocou a performance em outro patamar. A expressividade da performance seria completamente distinta não fosse essa composição, e a composição não teria sentido não fosse essa performance.
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Em “Teia” podemos perceber muitas das mudanças trazidas pelas tecnologias nos paradigmas das atividades musicais: as conflitantes fronteiras entre ferramenta tecnológica, instrumento musical, partitura, composição e obra; novos conceitos de concerto, interpretação, performance, gestos instrumentais e elementos multimídia; a criação baseada na experimentação de novos materiais; e a composição coletiva de um trabalho multidisciplinar envolvendo elementos digitais.
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A performance foi apresentada em diversos locais, entre o quais:
FILE2007 Hipersônica (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica), teatro do SESI em São Paulo, agosto de 2007; e XI SBCM (Simpósio Brasileiro de Computação Musical), São Paulo, setembro de 2007; com os seguintes participantes: Lílian Campesato e Valério Fiel da Costa, performers; Vitor Kisil Miskalo e Giuliano Obici, intérpretes do sistema musical interativo; Andrei Thomaz, intérprete do sistema digital de imagens; Francisco Serpa, iluminação; e Alexandre Porres e Alexandre Fenerich, assistência de palco.
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Iº EIPdBr (Encontro Internacional Puredata Brasil), São Paulo, maio de 2008; e Re:New2008, Copenhague, Dinamarca, maio de 2008; com: Alexandre Porres, performer; Lílian Campesato, performer e intérprete do sistema digital de imagens; e Vitor Kisil Miskalo, intérprete do sistema musical interativo e controlador da iluminação.
FILE RIO 2009 (três apresentações), teatro do Oi Futuro, Rio de Janeiro, março de 2009. Com: Lílian Campesato e Alexandre Porres, performers; Francisco Serpa, iluminação; Vitor Kisil, intérprete do sistema musical interativo; Fernando Iazzetta, intérprete do sistema digital de imagens e assistente e controlador técnico; e André Thomaz, assistência de palco.