Ser Voz
(2012)
[performance]
Michele Agnes, Lílian Campesato, Julián Jaramillo e Vitor Kisil
Textos extraídos de minha tese de doutorado: s
​
Ser Voz[1] é uma peça para quatro performers (dois homens e duas mulheres) para ser realizada em concertos em rede (via internet), com dois músicos em uma localidade e dois músicos em outra. A performance musical é exclusivamente vocal e é guiada por uma partitura realizada por Michelle Agnes. A programação dos patches utilizados para a captura e transmissão do vídeo foi realizada por Julián Jaramillo.
​
Em sua estreia, a performance foi apresentada simultaneamente no auditório Lupe Cotrin (ECA-USP) e no Sonic Arts Research Centre da Queen's University (SARC) em Belfast, Irlanda do Norte em um concerto composto por outras quatro peças. Em São Paulo o concerto foi o segundo da série Net Concert e contou com Julián Jaramillo e comigo como músicos presentes. Em Belfast, foi o concerto de abertura do Sonorities Festival of Cotemporary Music 2012 e teve a presença de Michelle Agnes e Lílian Campesato.
Os textos trabalhados por Michelle na elaboração da partitura consistem de fragmentos de Rimbaud, T. S. Eliot, Lope de Vega, Borges, Octávio Paz, Neruda e Oswald de Andrade, que são alternados com fragmentos de The Pleasure of the Text, de Roland Barthes. Este texto de Barthes, além de unificar a peça, serve como material primordial da construção musical proposta por Michelle, e se refere aos aspectos corporais da voz:
[...] the language lined with flesh, a text where we can hear the grain of the throat, the patina of consonants, the voluptuousness of vowels, a hole carnal stereophony: the articulation of the body, of the tongue, not that of meaning, of language. […] It granulates, it crackles, it caresses, it grates, it cuts, it comes: that is bliss[2] (BARTHES, 1975: 66-67).
​
Segundo a nota de programa:
Vozes ausentes e presentes são protagonistas desta experiência audiovisual. O propósito de 'Ser voz' é criar um espécie de teatro vocal abstrato. Padrões rítmicos, sons imitativos, onomatopeias e textos recitados são os principais materiais da peça, e são produzidos por dois pares de performers, separados fisicamente, mas que interagem via recursos de rede (NUSOM, 2012).
A partitura explora diversos recursos vocais não convencionais que acabam destacando estes aspectos corporais da voz que normalmente são esquecidos em favor do conteúdo semântico ou, no caso da música, das características musicais do canto convencional. A peça alterna entre uma valorização do corpo vocal através destes recursos não usuais e do conteúdo semântico através dos diversos textos em distintas línguas.
​
Cada músico, além de um microfone, possui em sua frente uma estante de partituras na qual é presa uma luminária e uma webcam, posicionada na altura da boca do performer, presa a uma estante de microfones.
[1] A peça está disponível nos seguintes links (acessados no dia 31 de janeiro de 2014):
<http://www.youtube.com/watch?v=SKPFnnoms-g>. Filmagem de São Paulo.
<http://www.youtube.com/watch?v=78Qa8iG1qWs>. Filmagem de Belfast.
[2] [...] a linguagem alinhada com a carne, um texto onde podemos ouvir a granulação da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, uma estereofonia de um buraco carnal: a articulação do corpo, da língua, não aquela do conteúdo, da linguagem. [...] Granula, crepita, acaricia, irrita, corta e vem: é êxtase..
Figura 29 - Michelle Agnes realizando performance de Ser voz em Belfast. Com microfone, luminária e webcam na altura dos lábios.
O patch funciona basicamente da seguinte forma: o sinal de cada câmera é enviado para o computador (há um computador dedicado às imagens em Belfast e outro em São Paulo) e o sistema é calibrado para reconhecer o posicionamento dos lábios dos músicos. Para facilitar este trabalho, cada músico reforça a cor de seus lábios utilizando um batom.
Figura 30 - Julián Jaramillo e Vitor Kisil no concerto em São Paulo ao lado do telão que está projetando seus lábios emoldurados juntamente aos de Michelle Agnes e Lílian Campesato, que estão em Belfast realizando simultaneamente a performance.
​
Depois que a calibragem é realizada, o patch cria uma moldura ao redor da boca de cada um dos performers, de forma que apenas elas apareçam na imagem que será projetada nas telas (localizadas em cada um dos palcos). Os dados são enviados entre os computadores via rede e as quatro bocas são somadas e projetadas ao mesmo tempo nos dois espaços.
O patch praticamente não é manipulado no decorrer da performance[1], mas ele é afetado por ela. O que ocorre é que a moldura que envolve cada uma das bocas se adapta à posição do músico perante a webcam e acompanha a movimentação deste, e conforme os músicos abrem as bocas, se movimentam lateralmente, se aproximam ou se distanciam das câmeras, as molduras acompanham os movimentos e têm suas dimensões alteradas para cercar apenas os lábios.
A partitura realizada por Michelle Agnes foi sendo modificada no decorrer dos ensaios incorporando sugestões e alternativas descobertas coletivamente que se mostraram mais interessantes para o resultado pretendido. O posicionamento dos músicos perante as câmeras durante a performance também foi planejado coletivamente durante os ensaios através das experimentações realizadas com o sistema montado.
Tais experimentações com o sistema foram fundamentais para o desenvolvimento da performance pois revelaram possibilidades expressivas do sistema que não haviam sido antecipadas por nenhum dos artistas envolvidos. Um exemplo claro é na transição da primeira para a segunda parte, onde ocorre um crescendo com grande aumento de energia dos materiais sonoros e que culmina em um curto efeito vocal realizado fortemente por Lílian Campesato. Através dos ensaios com o sistema, surgiu a intenção de iniciarmos este trecho com as quatro bocas afastadas em diferentes pontos da tela e gradualmente ir aproximando-as da câmera, aumentando seu tamanho na tela, e posicionando-as de forma mais próxima ao centro da tela. Durante este ápice, deixamos apenas a boca da Lílian ocupando grande parte da tela enquanto as outras bocas se afastam rapidamente e permanecem fechadas nos cantos da imagem. Isto ocorre entre aproximadamente entre os 2m30 e 2m45 da filmagem de São Paulo. Outro exemplo é a movimentação da cabeça horizontalmente em ciclos regulares enquanto há um efeito vocal de respiração com filtragens sonoras realizadas pela abertura dos lábios (aproximadamente nos três minutos da filmagem de São Paulo).
​
[1] Ocasionalmente é necessário realizar ajustes no contraste das câmeras para aumentar ou diminuir a sensibilidade do sistema, que varia conforme as condições de luminosidade.
Ser Voz (2012) - Festival Sonorities - Visão de São Paulo
Ser Voz (2012) - Festival Sonorities - Visão de Belfast